Director do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do IPOLFG

Director do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do IPOLFG

Presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia (2000-2002)

Presidente do Grupo de Estudos de Cancro de Cabeça e Pescoço (2010-2014)

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sábado, 7 de julho de 2012

Expresso 3-3-2012 / Entrevista a Clara Ferreira Alves


JORGE ROSA SANTOS

"Todos nós vamos tendo pequenos cancros"

O Diretor do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Instituto Português de
Oncologia fala do cancro e de como é tratado em Portugal. E não poupa a Fundação
Champalimaud, que acusa de ter máquinas, estacionamento, jardins e "tudo muito
bonito"... mas não ter doentes.
FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
POR Clara Ferreira Alves
O almoço do médico foi no refeitório do Instituto Português de Oncologia (IPO),
antes de começar as cirurgias da tarde. JORGE ROSA
SANTOS, cirurgião oncológico, diretor do Serviço de Cirurgia de
Cabeça e Pescoço do Instituto Português de Oncologia, não tem tempo livre.
Começou a trabalhar antes da oito horas da manhã e prepara-se para sair depois
das dez da noite. Falámos de cancro e dos seus doentes, de hospitais e da
dedicação profunda a casos clínicos que transcendem, pelo balanço entre a vida e
a morte, a relação entre médico e paciente. Em Portugal, se tudo funcionasse
como funciona o IPO, um centro de excelência numas decrépitas instalações, não
era mau. Falámos ainda da inexistente filantropia e da Fundação Champalimaud,
que tem tudo — instalações, máquinas, jardins —, mas não tem doentes. Doentes
são o que o IPO tem mais, porque o cancro é a primeira causa de morte natural em
Portugal. O IPO está em mudanças. Toda esta agitação coincide com a
saída do Conselho de Administração, que teve a virtude de definir de uma vez por
todas se saíamos ou não daqui e, tendo sido decidido não sair por razões de
ordem financeira, resolveu investir na recuperação física da estrutura
existente, que estava degradada e que esteve parada anos e anos à espera da
mudança.
- Há quantos anos trabalha no IPO? E que balanço faz desse
período de instabilidade, quando se dizia que o IPO ia para outro lugar?
- Há muitos, desde 1984. Tivemos aqui dois processos. Há uns 15 anos,
era a doutora Maria de Belém administradora, pensou-se criar um pavilhão novo,
que seria o do ambulatório. Para aliviar e criar espaços devolutos neste
edifício. Durante anos e anos não se investiu na renovação dos espaços de
tratamento ambulatório a pensar nesse pavilhão, que nunca foi construído. Depois
veio a ideia da saída do Instituto deste local. Havia gente a favor e contra, e
eu era formalmente contra. Temos espaço, boa acessibilidade, há um património
histórico a manter. Era normal manter as instalações aqui, apesar das vantagens
de ter um hospital de raiz, novo, com um centro maior e com mais valências. A
saída estaria de acordo com a ideia de que este espaço poderia ter um grande
valor imobiliário, mas aí caberiam outros constrangimentos, porque o espaço foi
doado por uma família para aqui ser instalado o IPO. Chegaram a aparecer
notícias sobre familiares das pessoas que doaram o espaço no sentido de o
recuperarem. Segundo o PDM, aqui seria uma zona verde. O IPO está construído
sobre o túnel do Metro. Sempre achei preferível manter o hospital aqui.
- E, tal qual está, o hospital é suficiente para as necessidades?
- Temos espaço. São sete hectares. Era perfeitamente possível
construir um novo hospital, com estacionamento e novos edifícios que pudessem
suprir as necessidades do IPO. - Nem se fez o hospital de dia nem
mudaram de sítio... - Nunca se constituiu formalmente nenhum movimento
para que não se mudasse de local. Não mudámos por outras razões. Chegou a ser
feito, no Alto da Bela Vista, o lançamento da primeira pedra do novo IPO, com
uma megatenda, com discursos e champanhe. Mas ficámos aqui. Agora foram
autorizadas as obras de recuperação e de beneficiação. Nos pisos de internamento
tínhamos deficiências e enfermarias com sete e oito doentes, com casas de banho
de homens e mulheres em condições horríveis. íamos gerindo as enfermarias de
acordo com o afluxo de doentes. - O IPO só recebe doentes do SNS?
- Não recebe doentes privados. Só recebe doentes do SNS e dos
subsistemas de Saúde. Antes de 74 havia uma parte de um piso afeto a doentes
particulares. Eram operados fora do funcionamento dos blocos operatórios. Antes
do 25 de abril havia clínica privada nos hospitais públicos. Isso acabou. Aqui
nunca há subaproveitamento dos blocos operatórios. Eu hoje tenho bloco e vou
acabar de operar às dez da noite.
- Este IPO recebe doentes do norte e
do centro ou os outros IPO cobrem tudo?
- Cobrem. Nós recebemos um doente que precise de ser operado a uma neoplasia e que tenha os filhos a trabalhar na zona de Lisboa, porque ele vai precisar de acompanhamento familiar.
O apoio é maior. Mas também pode acontecer ao contrário. Não há uma rigidez
total no acesso aos cuidados oncológicos.
- Qual é a especificidade do IPO? Não é um hospital igual aos outros.
- O IPO ganhou conhecimento em áreas muito específicas da patologia imunológica. Eu trabalho na área da cabeça e pescoço, que foi uma área que se desenvolveu muito, e há poucos
hospitais a tratarem patologias da cabeça e pescoço. Há outras áreas, cancro
ginecológico, da mama, que ganharam aqui grande know-how de tratamento
cirúrgico. E no IPO coexistem as diversas valências que constituem o tratamento
básico do cancro. O cancro da cabeça e pescoço, por exemplo, é tratado
cirurgicamente, complementado com radioterapia, antibioterapia, e aqui
agregam-se esses tratamentos. O doente passa por grupos multidisciplinares de
patologia. Os médicos programam, delineiam conjuntamente uma estratégia
terapêutica e conhecem o doente. Não há atos avulsos. No IPO há uma hierarquia
vertical, mas as estruturas horizontais cortam transversalmente essa estrutura
quando se trata um doente. Tenho-me batido muito por isto. Fomos aperfeiçoando o
método terapêutico. O Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço entusiasma-me
muito. Um serviço que não tenha designação homónima às carreiras médicas é uma
coisa que não existe. O serviço foi criado assim em 1969, chamava-se Clínica de
Tumores de Cabeça e Pescoço. Envolvia otorrinolaringologia, estomatologia,
maxilofacial, plástica e, na altura, neurocirurgia. Hoje temos um neurocirurgião
consultor, que trabalha com o professor Lobo Antunes. Ora esta estrutura é
inovadora e inspirada no Memorial (Sloan-Kettering) de Nova Iorque. Várias
pessoas que aqui trabalhavam, o professor Francisco Martins, o professor José
Conde, inspiraram-se nesse hospital. Isto nem sempre é entendido, e as
especialidades querem ter espaço próprio. Esta estrutura é, desde 69, uma
estrutura extraordinária. No estrangeiro existe cirurgia por áreas topográficas,
cabeça e pescoço, pélvica, etc. A cirurgia oncológica é uma cirurgia não de
órgão mas topográfica, de região.
- Essa multidisciplinaridade funciona bem? Não há fricção? Como haveria, por exemplo, em grandes hospitais, como Santa Maria ou São José?
- Funciona. Aqui somos muito poucos.
Somos duzentos e poucos médicos. É insuficiente, sem ser extremamente
insuficiente. O Instituto nunca quis alargar os quadros médicos. Não pode ser
comparado com um hospital como Santa Maria, que tem um corpo clínico extenso. No
IPO, se sai um médico, não entra outro. - As estatísticas dizem que
uma pessoa morre de cancro de tantos em tantos minutos, poucos... O leigo tem a
sensação de que o cancro é quase epidemiológico. Dizima a família, os amigos, os
conhecidos.
- Há um aumento do cancro ou da deteção?
- Há um aumento da doença. Aumento que é uma resultante provável do aumento da esperança de vida. Há quem diga que todos nós, ao longo da vida, vamos ter um cancro, depende
de quando o vamos ter. Todos nós vamos tendo pequenos cancros. Os nossos
sistemas genético e imunológico corrigem os riscos da duplicação celular. Por
vezes existe um erro genético que torna o cancro inevitável. Por exemplo, o
carcinoma medular da tiroideia está associado ao gene RET. Quando vemos que um
doente é portador da mutação do gene, se formos fazer um estudo genético dos
filhos recém-nascidos ou pequenos e se a criança tiver a mutação do gene,
propomos que seja operada. Ciairgia profilática. Também existe no carcinoma da
mama ligado a uma determinada alteração genética, embora não seja tão seguro
como na tiroideia, porque aí temos a certeza de que a criança com a mutação do
gene vai desenvolver um carcinoma medular. Tiramos a tiroide a bebés de seis
meses. Qualquer pessoa sem tiroide vive normalmente. Pode ter filhos, etc. Claro
que, se um doente sabe que tem a mutação do gene, tem de estar avisado de que a
sua descendência corre esse risco, aconselhamos mas não proibimos. Fazem-se
estudos pré-fertilização, estudo genético pré-natal. Os espermatozoides são
estudados do ponto de vista genético e escolhem-se os ovócitos que não tenham o
erro genético. São esses que são utilizados na fertilização. Há cancros em que a
alteração do gene está associada ao cancro, cancro medular da tiroideia, da
mama, certos casos de cancro do estômago... O professor Sobrinho Simões tem
estudado isto até à exaustão.
- De que modo é que interagem com o SNS? Um doente que tem esse carcinoma pode ser tratado num hospital que não segue o método terapêutico integrado do IPO?
- Felizmente, 80% ou 90% desses carcinomas passam pelos IPO. E nos HUC, ou em Santa Maria, também já estão a fazer o estudo genético. O problema do carcinoma da mama é mais complicado, porque o número é muito grande e o tratamento cirúrgico abarca muitas
instituições hospitalares. - Na cavidade oral também faz cirurgia
profilática ou só opera quando existe carcinoma? Só quando existe carcinoma.
Profilaxia só no da tiroideia, porque este carcinoma mata. E 80% da patologia
oncológica da cabeça e pescoço é tratada no IPO.
- São consultados por doentes e por médicos?
- Claro! E digo a todos que tenho imenso gosto em que venham cá apresentar o caso aos médicos envolvidos no tratamento, para o discutirmos, promover a realização de consultas multidisciplinares mesmo com doentes que não pertençam à instituição. No outro dia acabei uma consulta multidisciplinar de tiroideia daquelas que deixam a cabeça em água. E fomos
almoçar ao refeitório. Cirurgiões, endocrinologistas. a medicina nuclear... e
estava a dizer-lhes: já viram o contrassenso de tudo isto? Não sei se está
dentro do financiamento dos hospitais, mas sabe que temos de viver de dinheiro.
Temos um orçamento. O hospital é financiado pelas consultas e por GDH, Grupos de
Diagnóstico Homogéneo, que correspondem aos internamentos. Cada internamento
gera um GDH, e o hospital é pago de acordo com esse GDH. Cada doente tem um. O
processo está relativamente simplificado, mas causa algumas perturbações e erros
nos GDH, que foram criados nos Estados Unidos e não apenas para instituições que
tratam cancro. Um doente operado tem um código, se é diabético tem outro código,
se tem um stent tem outro código, e os códigos são metidos numa máquina que gera
um GDH. Há aqui um problema grave, que é o da qualidade do ato prestado. Se o
doente é tratado num determinado hospital que gera um GDH e acaba a ter de ser
reoperado cá, vamos receber exatamente o mesmo GDH que eles receberam. Não é
valorizado o problema da qualidade na geração do GDH e no financiamento do
hospital. Eu opero um doente que tem um CGH, e o hospital recebe uma quantia.
Suponhamos uma parotidectomia. uma operação que pode ser bem ou mal feita. Nos
casos em que, por erro do cirurgião, ela tenha sido mal feita, o CGH é igual. O
problema da qualidade não tem repercussão no CGH.
- Como é que se faz a avaliação da qualidade para diferenciar o financiamento?
- Todas as instituições deveriam ter mecanismos de avaliação de qualidade, auditoria
interna e externa...
- Essa avaliação não existe.
- Mas tem de existir! Eu tenho de ser avaliado. Se não cumpro, vou para a rua ou deixo de
ser diretor de serviço. - Isso seria uma revolução na medicina. Os médicos são impunes. Nunca respondem pelos erros, nunca são avaliados...
- Mas deviam ser.
-Vejamos as consultas, que são outra forma de
financiamento. Quando um doente vai fazer uma TAC, não paga. No preço da
consulta — a primeira são 90 euros — estão incluídos os valores dos atos de
diagnóstico. Tá percebe que quanto menos exames pedir mais poupo. O que tem um
efeito perverso. Os 90 euros têm de incluir todos os exames que eu pedir. Quando
o doente vem mostrar os exames, o hospital recebe 80 euros. Por cada consulta há
um valor que é pago ao hospital. Mas imagine que os exames não chegam e tenho de
fazer um PET, que é caríssimo. Uns 600 ou 700 euros. Posso pedir um PET, que o
IPO tem de fazer. Estes valores são pensados para em cada 20 doentes ser
possível pedir um PET. - Se não pedir um PET para não sobrecarregar,
pode estar a pôr a vida do doente em risco?
- Pode acontecer.
-Mas nunca aconteceu haver exames pedidos que não fossem realizados. Faço justiça ao
CA. Pedimos um PET, mas muitas vezes não temos logo vaga, podemos ter de esperar
um mês.
- Se houver urgência total, podem mandar o doente para outro hospital?
- Podemos. E nunca tive qualquer problema. Espero não vir a
ter. O IPO funciona bem, mas precisa de mais recursos humanos, para repor as
pessoas que saíram. As admissões estão de certa forma coartadas, o que quer
dizer que quando encontro alguém que deve ser admitido por se integrar no
espírito do serviço, condição pela qual sempre me bati, não o posso fazer. Tem
de passar pela tutela. Não se pode tratar a Saúde de uma forma cega, limitativa.
Cada instituição é especial, cada doente é um caso.
- O cancro inspira terror. Penso que se há um hospital que toda a gente quer ver a funcionar em
pleno é o IPO. E ninguém se importa de pagar impostos para isso. Falámos já na
deteção do cancro e no aumento da esperança de vida. Há também mais meios de
diagnóstico do que havia. De que modo é que as máquinas mudaram um serviço como
o seu?
- A maior parte dos casos é diagnosticada de forma relativamente simples. Depois do diagnóstico temos de decidir o que vamos fazer, e para isso temos de fazer um estadiamento local, regional e sistémico da doença. A língua, por exemplo. Temos de ver se tem metástases regionais, no
pescoço, e se o doente tem metástases pulmonares ou hepáticas. A terapêutica é
diferente em função do estadiamento. O PET ainda não está aceite nos protocolos
como método de estadiamento de um doente com um cancro de cabeça e pescoço.
Porque o fenómeno da metastização sistémica é um fenómeno tardio nesse cancro. A
maior parte dos nossos estudos é importada, dos EUA etc. Não temos capacidade
para fazer esses estudos, apesar de a investigação básica científica ter
avançado muito por cá, Mas a investigação em custeio não está muito
desenvolvida, nem a contabilidade analítica, que tanta falta faz nas nossas
instituições. Na maioria desses estudos, o PET não é aceite como meio de
estadiar doentes pré-operatoriamente. Se em 50 doentes pedirmos três ou quatro
PET e se as outras consultas fizerem o mesmo, entope o PET. O nosso PET ainda é
um modelo antigo que não incorpora a TAC, não é um PET-CT. Penso que o concurso
está aberto para um novo PET.
- O que encarece o PET é o custo da máquina?
- Da máquina e dos radiofármacos. São muito caros. Num PET é
utilizada uma determinada droga, um açúcar, o FDG-18, que é metabolizado nas
células com maior índice metabólico, que são as cancerosas. E no músculo do
coração e no cérebro, que não param. O FDG-18 não dá para o cérebro. O FDG é
bombardeado para se tornar radioativo, é necessário um ciclotrão. Há outros
radiofármacos para outros exames. Nos doentes operados temos grande dificuldade
em ver se o doente tem alguma recidiva ou se são só sequelas, e o PET e
importantíssimo para essa avaliação. É um exame excelente.
- Falou da falta de contabilidade analítica. Como é que se otimizam os custos num hospital
destes, onde tudo é tão caro? E suponho que não existam neste país filantropos,
nem mesmo os que por aqui passaram, que dêem dinheiro para máquinas, alas,
enfermarias, ajudando o hospital a servir melhor os doentes... O Estado paga
tudo.
- Não existem estudos de contabilidade analítica. Nem filantropia. No tempo da Madame Marquet, que era então a dona do Ritz, o IPO tinha lençóis que tinham escrito Hotel Ritz. Era a grande filantropa do IPO.
Veja o caso do Duarte Lima, foi tratado aqui e ficou muito ligado ao IPO. Teve
um papel fundamental nos problemas dos dadores de medula. Quando havia uma
festa, ele era convidado e sempre o fomos cumprimentar. Ele não foi um
filantropo, mas tentou ajudar com o seu nome. Mas já trataram gente
importante e com dinheiro. Nos Estados Unidos, os doentes gratos dão muito
dinheiro aos hospitais. Não aqui. 0 último foi o comendador Nunes Correia, que
deu muito a este hospital. Foi há uns dez anos. A pneumologia foi toda montada
por ele. Há uns dinheiros da Gulbenkian, mas não se integram no conceito de
filantropia. E não tenho conhecimento de que isso suceda no Porto, que o Belmiro
de Azevedo ou outro dêem dinheiro...
Não existe uma ala Belmiro de Azevedo ou Américo Amorim, ou uma ala Jardim Gonçalves ou Ricardo Salgado, ou de qualquer outra personagem endinheirada que tivesse decidido ser generosa com o próximo. Em Portugal, a tradição é para ir buscar ao Estado.

Mudemos de assunto.

No caso do cancro da cabeça e pescoço, faz sentido a prevenção do álcool e do
tabaco? São fatores de alto risco?
- Seguramente, no carcinoma da cavidade oral. E nela incluo todas as vias aéreas digestivas superiores, VADS, Cavidade oral, orofaringe, laringe, traqueia, esófago. pulmão. Todas estas
doenças têm algumas causas semelhantes, entre as quais o fumo, o álcool, a
associação fumo-álcool. O fumo e o álcool potenciam a prevalência, mas a
associação dos dois potencia enormemente. O álcool altera as proteínas da mucosa
oral. Depende do grau de concentração alcoólica. O cancro oral não tem campanhas
de sensibilização, como o ginecológico ou o da mama, e é pouco falado, apesar da
prevalência grande de cancro oral. Tem-se investido muito no tratamento, na
radioterapia, na quimioterapia, na cirurgia, na reconstrução, mas o cerne da
questão não está aqui. Podemos diminuir os efeitos secundários, aumentar a taxa
de sobrevida, dar qualidade de vida a um doente desfigurado através da
reconstrução. O cerne é o rastreio, alterando-o radicalmente. O cancro da mama
diminuiu muito por causa das campanhas. Dantes, um cancro da mama era
diagnosticado quase sempre por um nódulo claramente palpável, um caroço. Hoje.
isso é raro, não chega a essa fase. O rastreio do cancro da cavidade oral também
podia ser feito, se os nossos cuidados primários de saúde funcionassem. A saúde
oral faz parte do Plano Nacional de Saúde. Melhorar e sensibilizar em relação
aos sinais de tumores nessa cavidade e na orofaringe e melhorar a acessibilidade
da população aos cuidados de saúde oral. A medicina dentária tem um papel
fundamental. Ora, a medicina dentária está ¦virada para a dentisteria e os
implantes. - Poupava-se muito dinheiro à medicina pública com esse
rastreio...
- 70% dos doentes que nos chegam, já chegam em fase muito avançada. Não foram detetados. Ou por causa do estigma do cancro ou porque o médico não viu que havia um cancro da língua ou da gengiva e medicou um antibiótico, um anti-inflamatório... Nos 30 anos que levo aqui, o panorama não se alterou. Ninguém fala em cancro da cabeça e pescoço. A tiroide não dá sinais,
mas o cancro oral vê-se. São cancros rápidos e com uma mortalidade terrível, tal
como o cancro do pulmão.
- O Presidente Lula está metido num sarilho...
- Não. porque teve cancro da laringe, e o cancro da glote é, de entre os da cabeça e pescoço, particularmente bom. No pulmão, percebe-se que não se diagnostique precocemente, tal a rapidez. O rastreio deste cancro não está perfeitamente estabelecido. É tão rápido na sua evolução que a pessoa pode fazer um exame de raios X num ano e estar boa e no ano seguinte ter um cancro inoperável. O rastreio do cancro da mama, ginecológico, colorretal, está
estabelecido. Na próstata, há um determinado número de neoplasias em que o
rastreio é importante. Mas não haver rastreio do cancro da cavidade oral. que se
vê muito bem, é incompreensível. E depois temos de tirar a língua, a
mandibular... E uma cirurgia altamente mutilante. com impacto estético e
funcional enorme, mais a desintegração social, profissional e familiar. Qual é o
médico de família que manda abrir a boca? São 30 segundos. Ninguém faz isso.
- Aqui, também têm de dar acompanhamento psicológico, psiquiátrico. O
tempo investido em cada doente é enorme. No IPO, um médico de topo ganha
muitíssimo menos do que um mediano administrador de uma empresa. E tem de ter
empada com o doente. Trabalhar num lugar destes não é fácil, os casos humanos
exigem muito...
- Das funções sociais do Estado, a Saúde é o sector em que o grau de execução tem melhorado extraordinariamente, e os resultados também. É o melhor sector de todos. Sem dúvida. E exige muito dos médicos. As pessoas acham que nos abstraímos, desumanizamos, mas não é verdade. Não somos peças. Vivemos intensamente estes problemas. A solidão do doente faz
com que ele fixe no médico todas as expectativas. Às vezes, o doente é
abandonado pela família. O médico diz a verdade, que o doente só tem alguns
meses de vida?
- Em Oncologia cria-se uma relação especial. Somos confidentes dos doentes. Não podemos faltar à verdade ao doente. Cada caso é um caso. e o processo é longo. Vamo-nos apercebendo do que o doente quer saber. Isto dos prazos é muito relativo. Podemos enganar-nos. Temos de gerir tudo, falar com a família... Mas a relação com o doente é altamente compensadora,
apesar dos falhanços e dos desaires tremendos. Não passamos o portão do hospital
e esquecemos tudo, ficamos a pensar. Temos casos que recordamos uma vida
inteira. Os dilemas, as angústias. Se eu tivesse decido assim... A unidade de
psiquiatria no hospital oncológico tem de ter uma vertente em relação ao doente
e outra para todo o pessoal envolvido no tratamento. Enfermeiros, médicos,
técnicos, etc.
- É pesado trabalhar aqui?
- É, mas eu gosto do que faço. é o que me dá prazer. Os profissionais de enfermagem têm um
contacto muito direto com os doentes e dão-lhes uma ajuda tremenda, ouvindo-os.
Muitos são jovens. É preciso estoicismo e força espiritual para ultrapassar
isto. Tenho promovido no serviço ações em que as pessoas possam falar, nem que
seja para se zangarem. Para evitar que entrem em burn-out. A percentagem de
burn-out é elevada.
- E tempo para investigar, estudar? -
Quando se chega a casa, vai-se para o computador. Não pode ser no horário do
hospital. Felizmente, com um clicar temos acesso aos protocolos do M.D. Anderson
em Houston, ao Villejuif, ao Memorial... A partilha e interação são grandes,
graças às novas tecnologias. E depois, no caso da cirurgia, é preciso instinto e
é necessário praticar. Muito.
- O tratamento do cancro não traz rentabilidade às seguradoras nem aos privados. Veja-se o preço do tratamento Gamma Knife. Quem paga aqueles preços? Não deveríamos dotar os IPO de
equipamentos e serviços state of the art? Visto serem os únicos hospitais onde o
cancro é tratado a sério. Este edifício é ainda o velho hospital de Palhavã,
decrépito...
- O IPO do Porto tem umas instalações state of the art. Aqui, se eu sair e regressar, não tenho onde estacionar. O IPO de Lisboa atrasou-se muito em relação ao do Porto. Um atraso monumental. O cancro é a primeira causa de morte natural. Tem de haver um plano oncológico nacional que defina a estratégia dos Institutos. Houve uma rede de referenciação em
Oncologia, que foi feita com o ministro Correia de Campos no segundo governo
Guterres e que se integrava num plano nacional. Define a circulação dos doentes
desde os cuidados primários, o que se trata e quem. Por exemplo, há uma regra de
ouro em cirurgia do cancro do recto: tem de ser bem tratado na primeira
intervenção, que condiciona tudo o resto.
- Fundação Champalimaud. Qual a relação com o IPO?
- A Fundação Champalimaud começou mal. Devia ter começado melhor já que ia trabalhar na área da Oncologia. Começaria por tentar chamar as pessoas mais marcantes da Oncologia nacional, quanto mais não fosse para estarem presentes na inauguração da Fundação. Não percebo porque é que estava lá o doutor em Economia e não estavam o presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia ou os presidentes dos Institutos de Oncologia. Além de instituições de
investigação, como o IPATIMUP... Mas a Fundação existe. Tem condições boas, tem
bom equipamento, tem profissionais... Alguns saídos do sector público. Mas
falta-lhe os doentes. É tudo muito bonito, os jardins, etc, mas no outro dia fui
lá e não há doentes.
- As pessoas lêem que a Fundação Champalimaud tem uma máquina de radioterapia inovadora, caríssima, que poupa o doente aos efeitos secundários, e perguntam porque é que o IPO não tem...
- Têm o IMRT, uma radioterapia de intensidade modulada, que tenta preservar as estruturas
anatómicas. Mas o IPO também tem. Só que os jornais dão azo a esses equívocos. A
grande parte das técnicas da Fundação Champalimaud já existe no sector público.
Eles vão comprar agora um aparelho caríssimo, de milhões, que de facto não
existe no sector público. Nem sei o nome dele. Há tempos, o presidente do CA
pediu às pessoas que pensassem sobre a Fundação Champalimaud. Porque têm
instalações, máquinas, e nós temos os doentes, que são uma riqueza incalculável
em casos clínicos. A minha resposta foi a de que deveríamos engolir sapos. Por
mais que me custe engolir sapos. Tentar estabelecer um protocolo. Se o IPO não
aproveitar isto, outros o vão fazer.
- Quem é que tem acesso aos
tratamentos caríssimos?
- Até agora tive dois doentes tratados lá. Ambos tinham seguros de saúde milionários, feitos no estrangeiro. É bizarro que nunca tenhamos sido convocados pela Fundação Champalimaud para discutir o assunto. E a Fundação veio buscar ao IPO o presente diretor clínico. Quer que
lhe diga o que penso mesmo? Aquilo faz pena. Está deserto. Por isso eles dizem
que têm um novo conceito: os doentes não têm uma sala de espera e entram
diretamente para os gabinetes. Teriam de ter centenas de gabinetes e centenas de
médicos. - O terreno das instalações, à beira-mar, foi oferecido pelo Estado. - Exatamente. A Fundação Champalimaud tem parque de estacionamento, muitos seguranças, jardins bonitos... Tem tudo menos o principal. Faz-me pena.

Sustentabilidade do SNS



Decorria o mês de Outubro de 2002.

Na altura era Presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, e por inerência competia-me proferir o discurso de abertura do IX Congresso Nacional deOncologia.

À cerimónia de abertura presidia o Exmo Sr. Ministro da Saúde. Dr. Luís Filipe Pereira.

Vivia-sea necessidade de reestruturar o SNS, e a febre de empresarialização dosHospitais era uma realidade que cruzava transversalmente os partidos políticosmaioritários e a sociedade civil.

Mas os perigos de uma política exclusivamente baseada em critérios economicistasera uma realidade e a missão Pública dos Hospitais, encontrava-se comprometida.

Tomando como alvo primordial o doenteoncológico, tentei sensibilizar o Sr. Ministro da Saúde para estes riscos,abordando os temas do direito à igualdade na acessibilidade ao diagnóstico etratamento do doente oncológico e o direito à assistência diferenciada em todasas fases da doença oncológica.

Justifiquei aminha ansiedade como preocupações lógicas, lícitas e humanas para quem a lutacontra o cancro tinha constituído um dos principais objectivos da sua vidaprofissional, e não como um obstáculo relativamente às medidas propostas.

Afirmei que estas preocupações deveriam sercompreendidas como o desejo de uma sã convivência entre o estado liberal e umestado social.

Reafirmei a necessidade de implementação de uma rede de referenciaçãoem Oncologia

Vinquei as minhas posições como as de alguém que, longe de estar contraa mudança, seria o primeiro a apoiá-la, desde que salvaguardados os princípiosfundamentais enunciados.

Ao Sr.Ministro da Saúde enderecei votos sinceros para que, em estreita colaboraçãocom os médicos, conseguisse levar por diante o ciclópico desafio que certamentesó por dever cívico tinha decidido aceitar.

Afirmei aindaque se vencesse, ganharíamos todos e ganharia Portugal.

Passaram dezanos!

Deixei aPresidência da Sociedade Portuguesa de Oncologia desde essa altura e limito-meao meu papel de médico com funções Directivas numa instituição oncológica,acumulando ainda alguns cargos menores em Sociedades Cientificas específicas.

Presentemente,fruto de erros imperdoáveis cometidos por todos mas muito especialmente portodos os políticos que nos têm governado, é com profunda mágoa que me deparocom o progressivo abandono dos valores de cultura médica, ética e moral quecaracterizaram o juramento de Hipócrates assumido por todos os Médicos.

Aacessibilidade ao diagnóstico e tratamento é cada vez mais desigual e o direitoinalienável a uma assistência diferenciada célere e de qualidade estádefinitivamente comprometida.

A hierarquiafundamental da competência é constantemente posta em causa, em detrimento de umclientelismo administrativo que compromete os princípios básicos pelos quais sedeveriam reger as unidades hospitalares.

Asustentabilidade do SNS atravessa um período de graves ameaças à sua sobrevivência,pese embora o discurso dos actuais governantes querendo-se passar por grandesdinamizadores e defensores deste serviço público.

Dez anosperdidos e em que a conclusão é óbvia!

O simbolismoda revolução francesa, representado pelos sentimentos de “igualdade, liberdadee fraternidade” são palavras vãs e sem sentido

Os doentes,única razão da existência e funcionamento dos Hospitais, continuarão a ser as grandesvítimas da desigualdade da falha no sentido da equidade e do desastre naredistribuição.

Pela nossaparte mercê de uma evolução biológica inexorável. será cada vez mais eminente anossa passagem para esse grupo.

Esta é uma tristeperspectiva para os anos de vida que nos restam!